BY: AbelCavalcante Eu criei coragem pra abrir os meus segredos aqui. Me chamo Abel, tenho vinte e um anos e estou na cadeia. Vou tentar te contar tudo conforme foi acontecendo.
Pra começar a te falar de mim, eu vou te falar primeiro de Maurício. Eu sou só o filho da doméstica que limpava a casa dele. É isso desde que eu nasci. Parece que minha mãe se tinha dado pro jardineiro que fugiu de volta pro norte quando soube da gravidez. Foi o que me contaram.
Isso pouco me entristece ou importa, muito sinceramente. Acho até que chego a algum sentimento que me parece culpa por não sentir nada. Acaba que serve. Traz uma certa paz, isso de conseguir sentir pelo menos culpa.
O sentimento mais forte que me lembro de sentir era vontade de ser parte daquela família. Crescer de fora do lado de dentro de uma família que não é a sua pode ser muito confuso.
Maurício tinha pouco mais de um ano quando eu nasci e, naturalmente, herdei os restos dele, sempre herdei o que ele não usava mais, o que não lhe cabia mais, o que ele não quisesse mais. Ganhei o berço, as roupinhas de pagão, os cueiros... Até as fraldas de pano dele vieram pra mim. E chego a acreditar que chupei também suas primeiras chupetas e mamei em suas mamadeiras velhas.
"Era tudo muito difícil nos tempos do cruzado." Cresci ouvindo minha mãe arrastando este fantasma como se me pedisse desculpas por eu não ter tido coisas compradas exclusivamente pra mim.
Assim, eu andava pela casa como um mini-Maurício, uma versão pobre, de segunda-mão dele. Aos meus bonecos faltavam braços ou pernas e meus carrinhos andavam sem rodas aqui e ali. Era muito mais fácil me dar tudo do que ter o longo trabalho de jogar no lixo. Também acho que seria feio pros donos da casa jogarem os pertences velhos do seu filho no lixo uma vez que havia ali o filho da empregada pouca coisa mais novo. Não pareceria correto da parte deles.
E era exatamente assim que eu era tratado dentro de casa. Corretamente. No meu devido lugar. Me davam uma atenção e até algum cuidado porque, assim, parecia adequado. Não me lembro de já ter ganho um beijo da Sônia ou coisa parecida. E embora, hoje, ela viva repetindo que me ama mais que a Maurício - quando a levo bêbada escada acima - ela sempre me tratava com não mais que certa amabilidade decorosa. Apenas. No Natal, eram tomados por um senso de cristianismo e me enchiam de presentes, novos, comprados pra mim.
Lembro de passar noites delirando com como seria a vida se eu fosse filho dos patrões, irmão de Maurício. Dele eu queria estar perto o tempo todo, quase como uma sombra. Adorava ouvir o som da sua voz, ser acordado por ela; brincar com ele e todos os seus brinquedos ou apenas ficar deitado do seu lado assistindo TV.
Muitas vezes ele me ajudava com o dever, o que era bom pra ele rever o que tinha visto no ano anterior. Estudávamos na mesma escola. Os pais deles pagavam por mim. Existe até uma poupança em meu nome, sob cláusula de servir apenas para fins acadêmicos. Eram gente muito, muito rica. De uma família de gerações e gerações de gente muito, muito rica. De ambos os lados. Podiam se dar ao luxo de deixar bem o menino que crescia nos fundos da mansão histórica herdada por Sônia.
Não posso dizer que "conheci" Maurício. Não posso começar a contar sobre um evento específico em que tenha sido apresentado a ele, mas a memória mais antiga que tenho dele tem a ver com uma dor horrível causada pela mordida de um Maurício de seis anos quando, segundo me conta minha mãe, me viu brincando com o "Lava-Rápido de 3 Andares Hot Wheels" dele.
Eu ia escrever que criança não tem vergonha na cara pra explicar que voltei a brincar com ele logo que o meu braço parou de doer, mas não posso usar as crianças pra justificar a minha falta de amor próprio. Porque aquela não foi a única vez em que eu voltei a "brincar" com ele depois de ele ter me machucado - física, psicológica e emocionalmente falando. Não. Isso se repetiu muitas outras vezes.
O nome lhe tinha caído como uma luva. Porque se tinha uma coisa que aquele garoto era, era mau. Uma vez me deu um vidro de amônia e mandou que eu cheirasse:
"Cheira só. É um cheiro muito bom." Eu tonto, enfiei o nariz com força no vidro e se você, alguma vez, já inalou amônia, entende do teor de maldade no coração de Maurício.
Houve outra em que ele tinha o skate novinho em frente a ele e me chamou pra me contar um segredo, quando cheguei suficientemente perto, ele deu um pisão na ponta da prancha que levantou voo direto pra minha boca. Levei três pontos no lábio. Ele ficou de castigo por três semanas, uma pra cada ponto que levei. Mas parece que saiu em condicional no segundo dia, afinal eu era só o filho da empregada.
Você deve estar pensando: "Como alguém pode ser tão idiota e pagar tanto pau um sujeito desses?"
Acontece que tinha um outro lado dele. Um lado que só parecia vir à tona quando eu começava a chorar de algum mal que ele me tinha feito. Ele ficava todo afoito, meio desesperado, fazendo de tudo pra me aliviar da dor. E não era pra me fazer calar na esperança de que não percebessem o que ele tinha feito, porque a primeira coisa que ele fazia quando alguém chegava era se acusar. Ele não tinha medo das retaliações de sua maldade. Parecia que tinha medo mesmo era do que ia acontecer comigo.
E, então, ele virara como um amigo pra mim. Só me tratava bem, me deixava brincar com o que eu quisesse e até me mandava socá-lo pra descontar o que tinha feito - nunca pude lhe causar dor em igual medida, sempre fui essa florzinha fresca nojenta!
A primeira vez em que ele entrou escondido no meu quarto de madrugada foi quando eu tinha acabado de chegar do hospital. Desta vez com um galo de uma pedrada que ele me brindou a testa. Eu tinha sete anos e me lembro de tremer de medo de que ele tivesse ido ali pra apertar o meu galo ou outra maldade qualquer, mas ele veio com uma sacola com gelo e me disse pra calar a boca que aquilo ia aliviar.
Posso dizer que, verdadeiramente, aliviou. Mas não o gelo, e sim o cafuné que ele ficou me fazendo. Ele deitou na cama comigo e mandou que eu deitasse minha cabeça no seu braço, me abraçou e dormimos. Quando acordei ele já não estava do meu lado, mas durante o dia inteiro e também pelas duas semanas que seguiram, Maurício era só cuidados comigo. Nos primeiros dias, deitava minha cabeça no seu colo pra aplicar a compressa de gelo enquanto víamos desenho na TV.
Lembro que já aí, eu conseguira gostar de ter levado a pedrada. Eu já entendia que aquelas coisas funcionavam como um Vale-Maurício-Bonzinho pra mim.
Mas até isso acabou. A vida naquele palacete foi virada do avesso quando Armando e Sônia se separaram e Maurício foi embora com o pai pra França quando eu tinha doze anos.
E foi tudo um inferno. E eu não sei se ardia mais quando Maurício vinha passar as férias com a gente ou durante o ano letivo quando ele sumia pra casa do pai e só ligava de vez em quando pra falar com a Sônia. Eu acho que ardia igual, o inferno queimava igual o ano inteiro, só que, paradoxalmente, alguma coisa na baforada quente que era a presença dele, me aliviava a queimação. Pelo menos eu sabia dele, onde estava, o que fazia. Podia vê-lo e, quem sabe, se ele assim quisesse, podia satisfazê-lo no meio da noite. Mas ele só veio nas férias nos primeiros dois anos e parou de vir. Sônia é que ia visitá-lo e nunca me levaria junto.
Muitas vezes eu quis morrer. Talvez o inferno de verdade fosse um pouco mais fresco do que o meu. Ou talvez, de tanto sofrimento, eu fosse direto pro céu penitenciado e absolvido de todos os meus pecados. A maioria deles, cometidos de acordo com a vontade de Maurício. Foi sempre assim, tudo de acordo com a vontade de Maurício.
Mas Armando morreu assim sem mais nem menos uns cinco anos depois que foram embora, fico pensando se a força do meu pensamento teve alguma coisa a ver com isso. Não duvido. Não desejei que ele morresse, mas que Maurício voltasse pra casa e foi o que aconteceu.
Acho que eu estava contando da primeira massagem que fiz nos pés de Maurício. Depois disso, fiquei mais um tempo sem vê-lo. Mesmo morando na mesma casa, isso não era difícil de acontecer e eu não ia repetir o ridículo de aparecer no seu quarto. Não tinha estrutura pra tamanha humilhação. Pode até ser que ele desejasse que eu fizesse assim, mas eu não tinha coragem pra apostar nisso.
Eu estava deitado no meu quarto pensando em Maurício. Ele já tinha chegado. Já tinha subido as escadas e era tudo silêncio. Eu não tinha forças pra desviar meu pensamento. Só fazia pensar nele e desejar estar perto dele de novo, quando tomei um susto com o barulho da porta do meu quarto sendo aberta.
Maurício estava em pé, os olhos vazios me encarando. Ele cheirava a álcool e cigarro.
“Tô com fome.” Disse de olhar bêbado e sumiu da minha visão.
Continua...
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